Friday, December 9, 2011

UM INTRUSO NA MESA

Gabriela Lapa
Quando foi introduzido ilegalmente no Brasil, nos anos 1980, o caramujo africano era o plano perfeito dos criadores de escargot. Mais barato, resistente e melhor reprodutor, ele podia ser criado em qualquer lugar, sem alimentação especial. O que ninguém imaginava é que tanta adaptação transformaria a idéia brilhante em dor de cabeça, e iniciaria uma polêmica que divide, até hoje, os adeptos do seu uso na culinária e as pessoas que lutam para eliminá-lo.
O primeiro casal de caramujos africanos chegou ao país no bolso de um pesquisador catarinense, e não levou muito tempo para conquistar outros estados. “Foi o maior sucesso. Quando as pessoas começaram a criar escargot, o clima era o grande problema, porque o bicho não podia mais hibernar no inverno, como estava acostumado. Mas com a espécie africana era diferente; ela vivia bem no calor, e só precisava de um pouco de umidade para se reproduzir”, conta o veterinário Maurício Aquino, fundador da primeira Associação Brasileira de Criadores, no Rio de Janeiro.
Aquino lembra que os criadores chegaram a se reunir para vender a especiaria em latas de conserva, e assim conquistar os consumidores. “Ninguém gosta de esperar muito pela comida, nos restaurantes. Se eles não abandonassem logo o método tradicional, que era congelar a carne, o prejuízo seria enorme”, explica o veterinário. Mas a iniciativa não foi muito longe. Enquanto faziam a alegria dos comerciantes, os caramujos se multiplicavam, e sem predadores naturais, em pouco tempo a especiaria virou praga.
Em julho de 2008, a umidade do inverno facilitou a reprodução descontrolada de milhares de caramujos em Maceió – principalmente nos lugares próximos a terrenos baldios. No Tabuleiro do Martins, a população chegou a acionar a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) para controlar a situação, através da limpeza dos terrenos, mas como explica Maurício Aquino, a única maneira de evitar a multiplicação da espécie é eliminar os indivíduos, um a um. “Medidas preventivas não funcionam porque eles são muito versáteis e se adaptam a diferentes tipos de clima e hábitat”, diz o veterinário. Hoje, segundo ele, existem caramujos africanos em todos os estados brasileiros, com exceção de Roraima.
Praga assusta dono de sítio
O problema dos moradores do Tabuleiro, em 2008, se repete todos os anos no Litoral Norte do Estado. Em Paripueira, a família do compositor Benedito Pontes vive uma temporada de caça ao caramujo sempre que o inverno se aproxima. “Basta chover um pouquinho e eles aparecem aos montes”, explica Pontes. “São tantos, que surgem nos lugares mais inusitados. Quando você menos espera, lá está o caramujo acabando uma folha de palmeira, ou o alto de um coqueiro”.
A primeira aparição dos bichos na região foi há quase oito anos. Benedito conta que ficou feliz quando os viu no quintal, acreditando que eram espécies marítimas, das quais se extrai a concha para fins decorativos. “Pensei: – Oba, vou usar um monte delas”, lembra Pontes. Hoje, vendo os caramujos tomarem conta da sua plantação, ele diz que a reação é outra. “Tudo o que eu planto eles destroem. Não importa onde está, nem a que altura, porque os caramujos vão subindo, se contorcendo, e acabam com qualquer coisa que esteja pela frente. Não sei mais o que fazer para me livrar disso”, desabafa.
Criações são proibidas pelo Ibama
Depois que os criadores brasileiros de escargot descobriram o caramujo africano, o bicho foi se multiplicando discretamente. Como a produção era toda voltada para a venda, os comerciantes pensavam em expandir o negócio criando cooperativas de caramujo enlatado, enquanto a espécie crescia sem que ninguém percebesse.
Mas essa proliferação desmedida chamou a atenção das autoridades, e em meados dos anos 1990, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) acabou proibindo a criação. Assustados, os comerciantes liberaram os bichos na natureza, e é aí que começa a polêmica.
“O Ibama proibiu por pressão de ecologistas. Eles acreditavam que o caramujo africano transmitia doenças porque há relatos na literatura estrangeira, mas aqui no Brasil nunca foi identificado algo relacionado. Em 23 anos, só se tem notícia de duas ocorrências, e apenas em uma a vítima realmente ingeriu o animal”, argumenta o veterinário Mauricio Aquino.
Responsável pelo setor de animais do Ibama em Alagoas, o biólogo Marius Belucci defende a decisão do órgão como uma medida necessária à preservação da flora brasileira. Para ele, incentivar a criação do caramujo africano é ameaçar as espécies nativas, já que o bicho não tem predadores naturais aqui. “O Ibama não tem gerência sobre a saúde pública, mas sim sobre a flora e a fauna. Quando o caramujo foi trazido para cá, não houve uma pesquisa de mercado para saber se havia demanda de consumo, e como ele se reproduz muito rápido acabou se tornando uma ameaça”, explica Belucci, lembrando que a inserção de uma espécie exótica na natureza é um trabalho delicado, e, sobretudo, de muita responsabilidade. “As pessoas têm que ter consciência do perigo que é criar um animal assim”, alerta o biólogo.
 Eliminação exige cuidado
No sítio de Benedito Pontes, o combate ao caramujo é feito de duas maneiras: com sal ou através de queimadas. Na primeira, o compositor explica que os funcionários recolhem os bichos e aplicam uma quantidade de sal. “A reação é como uma fervura, ele morre em pouco tempo”, relata. Já na segunda, depois de recolhidos, os caramujos são jogados em um buraco e queimados. Benedito diz que não gosta de matá-los, mas se os bichos forem deixados soltos no sítio, nenhuma horta ou planta sobrevive. “É impressionante como eles sobem em todos os lugares, até as fruteiras já foram prejudicadas”, explica.
Durante o trabalho de eliminação, Benedito orienta os funcionários a usar luvas ou, na falta delas, qualquer material que impeça um contato direto com o caramujo. Ele conta que adotou a medida por precaução, mesmo sem saber se o animal realmente pode prejudicar a saúde humana, e acertou. Segundo Marius Belucci, há vários casos de doenças, no exterior, provocadas pelo muco que ele solta quando se movimenta. Por isso o uso de proteção é recomendável. “Aqui no Brasil ainda não temos algo semelhante, mas é sempre bom prevenir”, pondera o biólogo.
Como alternativa para a matança de caramujos, o veterinário Maurício estimula o resgate da função original do bicho, quando foi trazido para o Brasil. No blog que mantém na internet, ele divulga, além de notícias sobre eventos de gastronomia envolvendo o animal, receitas de tortas e outros pratos mais simples. Maurício Aquino reconhece que a prática ainda é mal vista pela maioria das pessoas, mas não deixa de enxergar uma mudança de hábito, no futuro. “Além de ser consumido na França e na China, esse tipo de iguaria também é muito utilizado na Espanha , onde são organizados festivais como o de Lérida”, explica o veterinário. “Aqui, no Brasil, o hábito está ligado ao esclarecimento. As pessoas têm preconceito quando ouvem falar de caramujos, mas ele é nutritivo, rico em ferro, e abundante na natureza. Pode ser até uma solução para o problema da fome nas regiões mais secas”, avalia.
Em Alagoas, muita gente torce o nariz quando ouve falar em comer caramujo, seja ele africano ou não. No sítio Nina, em Paripueira, Benedito diz que não come, mesmo conhecendo algumas receitas. Mas não muito longe dali, uma família faz questão de preparar a iguaria para os parentes que vem de fora. E quando tem caramujo no cardápio, todos dizem que o dia é de festa. “Faz o maior sucesso”, comemora Jurandice Lopes, na Fazenda Santa Mônica.
A receita leva bastante leite de coco e, segundo Jurandice, lembra o sururu. A família dela conheceu o prato, chamado de Aruá, graças à cozinheira Maria da Conceição, que aprendeu a preparar com a mãe. “Depois de tratar o bicho, tirar aquela casca que ele tem, é só deixar ferver, refogar e botar o leite de coco. Bem preparadinho, é muito gostoso”, ensina. Na cozinha de Conceição ninguém tem medo do caramujo. Para Maurício Aquino, é uma conquista que precisa ser compartilhada: “nós estamos perdendo muito matando o bicho sem conhecê-lo”, avalia.

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