Quando foi introduzido
ilegalmente no Brasil, nos anos 1980, o caramujo africano era o plano perfeito
dos criadores de escargot. Mais barato, resistente e melhor reprodutor, ele
podia ser criado em qualquer lugar, sem alimentação especial. O que ninguém imaginava
é que tanta adaptação transformaria a idéia brilhante em dor de cabeça, e
iniciaria uma polêmica que divide, até hoje, os adeptos do seu uso na culinária
e as pessoas que lutam para eliminá-lo.
O primeiro casal de
caramujos africanos chegou ao país no bolso de um pesquisador catarinense, e
não levou muito tempo para conquistar outros estados. “Foi o maior sucesso.
Quando as pessoas começaram a criar escargot, o clima era o grande problema,
porque o bicho não podia mais hibernar no inverno, como estava acostumado. Mas
com a espécie africana era diferente; ela vivia bem no calor, e só precisava de
um pouco de umidade para se reproduzir”, conta o veterinário Maurício Aquino,
fundador da primeira Associação Brasileira de Criadores, no Rio de Janeiro.
Aquino lembra que os
criadores chegaram a se reunir para vender a especiaria em latas de conserva, e
assim conquistar os consumidores. “Ninguém gosta de esperar muito pela comida,
nos restaurantes. Se eles não abandonassem logo o método tradicional, que era
congelar a carne, o prejuízo seria enorme”, explica o veterinário. Mas a
iniciativa não foi muito longe. Enquanto faziam a alegria dos comerciantes, os
caramujos se multiplicavam, e sem predadores naturais, em pouco tempo a
especiaria virou praga.
Em julho de 2008, a
umidade do inverno facilitou a reprodução descontrolada de milhares de
caramujos em Maceió – principalmente nos lugares próximos a terrenos baldios.
No Tabuleiro do Martins, a população chegou a acionar a Secretaria Municipal de
Saúde (SMS) para controlar a situação, através da limpeza dos terrenos, mas
como explica Maurício Aquino, a única maneira de evitar a multiplicação da
espécie é eliminar os indivíduos, um a um. “Medidas preventivas não funcionam
porque eles são muito versáteis e se adaptam a diferentes tipos de clima e
hábitat”, diz o veterinário. Hoje, segundo ele, existem caramujos africanos em
todos os estados brasileiros, com exceção de Roraima.
Praga assusta dono de
sítio
O problema dos
moradores do Tabuleiro, em 2008, se repete todos os anos no Litoral Norte do
Estado. Em Paripueira, a família do compositor Benedito Pontes vive uma
temporada de caça ao caramujo sempre que o inverno se aproxima. “Basta chover
um pouquinho e eles aparecem aos montes”, explica Pontes. “São tantos, que
surgem nos lugares mais inusitados. Quando você menos espera, lá está o
caramujo acabando uma folha de palmeira, ou o alto de um coqueiro”.
A primeira aparição
dos bichos na região foi há quase oito anos. Benedito conta que ficou feliz
quando os viu no quintal, acreditando que eram espécies marítimas, das quais se
extrai a concha para fins decorativos. “Pensei: – Oba, vou usar um monte
delas”, lembra Pontes. Hoje, vendo os caramujos tomarem conta da sua plantação,
ele diz que a reação é outra. “Tudo o que eu planto eles destroem. Não importa
onde está, nem a que altura, porque os caramujos vão subindo, se contorcendo, e
acabam com qualquer coisa que esteja pela frente. Não sei mais o que fazer para
me livrar disso”, desabafa.
Criações são proibidas
pelo Ibama
Depois que os
criadores brasileiros de escargot descobriram o caramujo africano, o bicho foi
se multiplicando discretamente. Como a produção era toda voltada para a venda,
os comerciantes pensavam em expandir o negócio criando cooperativas de caramujo
enlatado, enquanto a espécie crescia sem que ninguém percebesse.
Mas essa proliferação
desmedida chamou a atenção das autoridades, e em meados dos anos 1990, o
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(Ibama) acabou proibindo a criação. Assustados, os comerciantes liberaram os
bichos na natureza, e é aí que começa a polêmica.
“O Ibama proibiu por
pressão de ecologistas. Eles acreditavam que o caramujo africano transmitia
doenças porque há relatos na literatura estrangeira, mas aqui no Brasil nunca
foi identificado algo relacionado. Em 23 anos, só se tem notícia de duas
ocorrências, e apenas em uma a vítima realmente ingeriu o animal”, argumenta o
veterinário Mauricio Aquino.
Responsável pelo setor
de animais do Ibama em Alagoas, o biólogo Marius Belucci defende a decisão do
órgão como uma medida necessária à preservação da flora brasileira. Para ele,
incentivar a criação do caramujo africano é ameaçar as espécies nativas, já que
o bicho não tem predadores naturais aqui. “O Ibama não tem gerência sobre a
saúde pública, mas sim sobre a flora e a fauna. Quando o caramujo foi trazido
para cá, não houve uma pesquisa de mercado para saber se havia demanda de
consumo, e como ele se reproduz muito rápido acabou se tornando uma ameaça”,
explica Belucci, lembrando que a inserção de uma espécie exótica na natureza é
um trabalho delicado, e, sobretudo, de muita responsabilidade. “As pessoas têm
que ter consciência do perigo que é criar um animal assim”, alerta o biólogo.
Eliminação exige
cuidado
No sítio de Benedito
Pontes, o combate ao caramujo é feito de duas maneiras: com sal ou através de
queimadas. Na primeira, o compositor explica que os funcionários recolhem os
bichos e aplicam uma quantidade de sal. “A reação é como uma fervura, ele morre
em pouco tempo”, relata. Já na segunda, depois de recolhidos, os caramujos são
jogados em um buraco e queimados. Benedito diz que não gosta de matá-los, mas
se os bichos forem deixados soltos no sítio, nenhuma horta ou planta sobrevive.
“É impressionante como eles sobem em todos os lugares, até as fruteiras já
foram prejudicadas”, explica.
Durante o trabalho de
eliminação, Benedito orienta os funcionários a usar luvas ou, na falta delas,
qualquer material que impeça um contato direto com o caramujo. Ele conta que
adotou a medida por precaução, mesmo sem saber se o animal realmente pode
prejudicar a saúde humana, e acertou. Segundo Marius Belucci, há vários casos
de doenças, no exterior, provocadas pelo muco que ele solta quando se
movimenta. Por isso o uso de proteção é recomendável. “Aqui no Brasil ainda não
temos algo semelhante, mas é sempre bom prevenir”, pondera o biólogo.
Como alternativa para
a matança de caramujos, o veterinário Maurício estimula o resgate da função
original do bicho, quando foi trazido para o Brasil. No blog que mantém na
internet, ele divulga, além de notícias sobre eventos de gastronomia envolvendo
o animal, receitas de tortas e outros pratos mais simples. Maurício Aquino
reconhece que a prática ainda é mal vista pela maioria das pessoas, mas não
deixa de enxergar uma mudança de hábito, no futuro. “Além de ser consumido na
França e na China, esse tipo de iguaria também é muito utilizado na Espanha ,
onde são organizados festivais como o de Lérida”, explica o veterinário. “Aqui,
no Brasil, o hábito está ligado ao esclarecimento. As pessoas têm preconceito
quando ouvem falar de caramujos, mas ele é nutritivo, rico em ferro, e
abundante na natureza. Pode ser até uma solução para o problema da fome nas
regiões mais secas”, avalia.
Em Alagoas, muita
gente torce o nariz quando ouve falar em comer caramujo, seja ele africano ou
não. No sítio Nina, em Paripueira, Benedito diz que não come, mesmo conhecendo
algumas receitas. Mas não muito longe dali, uma família faz questão de preparar
a iguaria para os parentes que vem de fora. E quando tem caramujo no cardápio,
todos dizem que o dia é de festa. “Faz o maior sucesso”, comemora Jurandice
Lopes, na Fazenda Santa Mônica.
A receita leva
bastante leite de coco e, segundo Jurandice, lembra o sururu. A família dela
conheceu o prato, chamado de Aruá, graças à cozinheira Maria da Conceição, que
aprendeu a preparar com a mãe. “Depois de tratar o bicho, tirar aquela casca
que ele tem, é só deixar ferver, refogar e botar o leite de coco. Bem
preparadinho, é muito gostoso”, ensina. Na cozinha de Conceição ninguém tem
medo do caramujo. Para Maurício Aquino, é uma conquista que precisa ser
compartilhada: “nós estamos perdendo muito matando o bicho sem conhecê-lo”,
avalia.
No comments:
Post a Comment