Pesquisa FAPESP
Edição 51 - Março 2000
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Escargot sem preconceito
O molusco pode ser a fonte de um cicatrizante e de proteína a baixo custo
Não foi exatamente amor à primeira vista. Há dez anos, quando estudava animais transgênicos na Escócia, no mesmo laboratório onde se fez a ovelha Dolly, a geneticista Maria de Fátima Martins dos Santos Lima viu a imagem de um escargot num cartão de Dia dos Namorados. Estranhou e, confessa, não gostou de seu aspecto, levemente asqueroso. Tempos depois, vencido o preconceito, interessou-se pelo animal e o adotou como tema de suas pesquisas na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP), em Pirassununga. Fez com que o molusco fosse visto como fonte de proteína a baixo custo - antes ali entendida apenas como sinônimo de bovinos e suínos - e conseguiu pôr no currículo dos alunos a disciplina Helicicultura Tropical, que trata da nutrição, do manejo e da seleção genética desse ser pouco estudado no Brasil.
Seu trabalho mostrou que o escargot pode ir além da mesa de jantar e da sala de aula. Quase por acaso, após um pequeno acidente, Maria de Fátima verificou que a saliva do escargot é um eficaz cicatrizante. Em 1995, o engenheiro florestal Pedro Pacheco, que a acompanha nas pesquisas, cortou-se no pulso com uma lâmina afiada. Em uma parte do ferimento, fechado com dez pontos, resolveu passar a tal saliva, secreção, muco ou, como é mais chamada, a baba do escargot. Pacheco ficou espantado com o resultado. "Nesse trecho os pontos caíram e o corte fechou em três dias", relata. "Onde não passei o muco os pontos só foram retirados sete dias depois e mesmo assim o corte abriu."
Maria de Fátima, que conhecia essa propriedade terapêutica do muco apenas de remotas referências bibliográficas, partiu para os testes microbiológicos. Confirmou as propriedades antimicrobianas e constatou que a saliva, liberada em abundância pelo animal, é rica em alantoína, uma proteína regeneradora de células da pele. A partir daí, chegou a uma pomada cicatrizante, testada com resultados animadores em coelhos, ratos e camundongos. Em processo de patenteamento, a pomada ganhou o nome de Akatinide, por causa da espécie de escargot utilizada nas pesquisas, a Achatina fulica , proveniente da África.
Em breve, devem começar os trabalhos que levem a novos métodos de coleta, filtragem e purificação da baba do escargot, que se pretende usar também com outras finalidades, como já se faz em outros países. Na França, diz a pesquisadora, há um xarope indicado para bronquite e outras complicações pulmonares. No Chile se produz com o extrato de uma espécie nativa, a Helix arpesa muller , um creme regenerador epidérmico para tratar rugas, manchas na pele, estrias, cicatrizes e verrugas. Segundo Maria de Fátima, pesquisadores japoneses trabalham com afinco no desenvolvimento de aplicações das propriedades medicinais das substâncias retiradas do escargot.
Europa e África
Foi Pacheco, em 1991, quem começou a estudar e a criar escargots em casa, movido pela curiosidade científica e por um de seus passatempos, a culinária. Tinha vivido uma temporada de martírios, sem meios de resolver os problemas com a alimentação e o crescimento dos animais. Havia centenas de criadores no Brasil, a maioria, como ele verificou, com pouco embasamento científico: usava-se uma variedade européia, inadequada ao país, do gênero Helix , da família Helicidae . A espécie mais comum é o Petit gris, que prefere temperaturas baixas e, portanto, é menos resistente ao clima tropical.
Nem é dos mais produtivos: tem apenas três posturas no ano e demora seis meses para chegar ao abate. Do Helix , derivam os termos helicicultura, a técnica de criar o escargot, e heliciário, o local da criação.Pacheco e Maria de Fátima descobriram uma alternativa nas espécies de caracóis herbívoros terrestres comestíveis da família Achatinidae, originária das regiões de florestas tropicais úmidas da África. Uma delas, a espécie Achatina fulica , é mais rústica e tem uma carne mais escura do que a européia. Resiste mais ao clima tropical brasileiro e apresenta uma produtividade bem maior: pode ter seis posturas ao ano, com até 500 ovos cada, e ser abatida aos 90 dias.
Dois anos depois, em 1993, quando comprovaram a rusticidade e o potencial produtivo da Achatina , Pacheco e Maria de Fátima decidiram dar à pesquisa ainda doméstica um caráter mais formal. Não foi fácil. Na universidade, afloraram preconceitos e resistências, pois na época os especialistas em produção animal trabalhavam apenas com bovinos, eqüinos, suínos e aves. "Não nos levavam a sério", lembra a pesquisadora. "Não podíamos nos dar ao luxo de errar." Ainda se associava fortemente o escargot, do qual pouco se conhecia, a uma atividade elitista. De fato, lembra Maria de Fátima, o escargot atende à sofisticada cozinha francesa, mas é também importante na alimentação humana desde a Era Paleolítica.
Uma a uma, as muralhas cederam. Em 1995, a FAPESP liberou um financiamento de R$ 25 mil para o primeiro projeto da equipe,Obtenção e desenvolvimento de procedimentos zootécnicos para a produção do escargot africano Achatina fulicanas Condições Climáticas do Sudeste Brasileiro , que se concentrou em nutrição animal. Não existia ainda uma ração básica apropriada para a criação de escargots no Brasil, segundo a pesquisadora. Ela e Pacheco testaram várias formulações e chegaram em 1998 a um programa de alimentação para o escargot do primeiro dia de vida ao abate ou ao período final de formação da matriz. No caso dos animais de engorda, descobriram como converter um quilo de ração em 1,1 quilo de peso de animal vivo.
A persistência rendeu um manual informal de criação de escargots. Segundo Pacheco, para produzir um quilo de escargot vivo, o custo de produção, incluindo mão-de-obra e ração, chega no máximo a R$ 1,30. O mercado paga R$ 6,00 por quilo.
Material didático
Maria de Fátima descobriu no escargot um animal ideal para suas aulas de melhoramento genético: tem várias gestações durante o ano e produz uma carne de alta qualidade, com 32% de proteína, além de cálcio, ferro e zinco. Tem apenas 0,5% de gordura, menos do que os peixes, e um pH (indicador de acidez ou alcalinidade) em torno de 8,2 (alcalino, portanto), o que o torna adequado para o tratamento de úlcera. Os estudos de seleção genética conduziram a novas linhagens. Entre as cinco classes de tamanho de Achatina (anão, pequeno, médio, grande e gigante), a pesquisadora escolheu o médio, para evitar dados superestimados.
Descobriu dois padrões de forma de concha: a alongada e a arredondada, que associam características de produtividade. O número de posturas e a produção de ovos dos oblongos são mais elevadas. Enquanto um grupo de seis animais alongados faz onze posturas em 90 dias, com um total de 2.900 ovos, outro de oblongos faz 21 posturas, com 7.141 ovos.
O trabalho de seleção concentra-se agora na definição de um tipo entre o oblongo e o alongado, para chegar numa linhagem de matrizes com padrão genético conhecido, que em dois anos possa estar disponível para os criadores. Maria de Fátima pretende estudar o DNA dos animais para identificar o nível de consangüinidade no desenvolvimento do plantel de três mil matrizes do Heliciário Experimental, no campus da USP em Pirassununga, e de outros criadores.
Implantado em 1994, o heliciário passou por uma reforma no ano passado, apoiada com R$ 46 mil liberados pela FAPESP. Ganhou também laboratório, almoxarifado e uma cozinha semi-industrial, onde se preparam pratos mais ajustados ao gosto brasileiro, como strogonoff, patês, tortas e novas formas de oferecer e consumir receitas francesas e italianas, temperadas com ervas secas e verdes, cebola, alho, manteigas e diferentes tipos de queijos.
O heliciário reúne atualmente uma equipe multidisciplinar, algo incomum naquela unidade da USP há poucos anos. Por ali circulam as biólogas Adriana Fusetto e Paula Ripamonte, a médica veterinária Marinil Landgraf e a psicóloga Taciana Pinto. As farmacêuticas (e irmãs) Cristina e Mamie Mizuzak, professoras da Faculdade de Farmácia e Odontologia da USP de Ribeirão Preto, estudam a regeneração dos tecidos tratados com a baba de escargot.
Como parte do projeto Obtenção e desenvolvimento de sistema de forrageamento para criações extensivas de caracóis comestíveis , que conta com um financiamento de R$ 50 mil da FAPESP, a equipe de Maria de Fátima desenvolve um sistema de criação de escargot consorciado com plantas. Ali há dezesseis canteiros, de 16 e 12 metros quadrados, feitos em alvenaria sem reboque, cobertos com tela e eletrificados para evitar a entrada de predadores como ratos, lagartos, cobras, galinhas e cachorros.
Nesses espaços vão crescer, junto com os escargots, 14 tipos de vegetais: acelga, alface, alfafa, brócoli, batata-doce, beterraba, bardana, cenoura, chicória, couve, girassol anão, mandioca doce, nabo branco e taioba. Segundo Pedro Pacheco, trata-se de um processo italiano que proporciona as mesmas condições que o molusco encontra na Natureza, testado pela primeira vez no Brasil.
Maria de Fátima pretende estender o uso do escargot para outros campos. Um deles é, ao mesmo tempo, terapêutico e educacional: o projeto Dr. Escargot, que conta com a participação de psicólogos e professores do ensino fundamental. Num primeiro momento, pretende-se avaliar os benefícios da convivência com o escargot no cotidiano das crianças autistas e com Síndrome de Down.
Na etapa seguinte, a meta é desenvolver a curiosidade de estudantes a respeito do comportamento e da alimentação do escargot. Maria de Fátima, que tanto se surpreendeu com a biologia e a genética, mostra-se agora impressionada com o potencial pedagógico do escargot - um animal pacífico, que não morde, não arranha, não causa alergia, é indiferente ao som e, segundo a pesquisadora, pode assim contribuir para melhorar as relações humanas.
Perfis :
- Maria de Fátima Martins dos Santos Lima formou-se em Medicina Veterinária na Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinária da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Jaboticabal, em 1981. Fez o mestrado em genética e melhoramento na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP) em Piracicaba e o doutorado em genética na Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto. Entre 1990 e 1991, fez um estágio de especialização no Instituto de Fisiologia Animal e Pesquisa Genética em Edimburgo, na Escócia. É professora da Faculdade de Medicina Veterinária da USP, em Pirassununga, desde 1984.
- Pedro Pacheco é formado em Engenharia Florestal pela Universidade Federal do Paraná, de Curitiba, em 1984, com mestrado em Ciências Florestais na Esalq da USP e doutorado em conclusão na área de Ecologia e Recursos Naturais na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). É pesquisador na área de Ecologia Aplicada e Produção Animal da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP, em Pirassununga, desde 1993.
Projetos :Obtenção e desenvolvimento de procedimentos zootécnicos para a produção do escargot africano Achatina fulicanas condições climáticas do Sudeste brasileiro e Obtenção e desenvolvimento de sistema de forrageamento para criações extensivas de caracóis comestíveis
Investimentos : R$ 24.320,00 e R$ 54.126,00
com toda certeza sei que o caramujo africano é comestivel e que também nossas especies podem vir a ser vetores!!!
ReplyDeletecreio que o insentivo conciente de seu consumo é a solução para a super população no brasil e outros paises.
obrigado pelo comentário. contribua conosco difundindo nossos informativos, combinado?
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